I

Luíza olhou cada aresta da casa desmontada, tentando guardar pra si um pouco dela própria, que se desdobrou por aqueles cantos e cômodos naquele último ano. A radiola não estava mais lá e mesmo assim Luíza ainda ouvia Domingo, com Caetano e Gal, disco que a fez um dia querer trilhar o caminho de volta, sem que soubesse – e isso talvez já supunha naquele ponto da história – que voltava para um lugar imaginário, onde o nascimento era o único fato, mas não sabia das estações, nem dos rios, nem nada que não fosse mero recorte do grande painel que construiu de sua cidade natal, por vezes folclórica, outras tantas ideal para começasse tudo outra vez, para que enfim tudo mudasse.
Só que ela escolhera um caminho mais longo. Antes de voltar, Luíza atravessaria sua primeira grande fronteira. Luíza iria para o estrangeiro, virar uma estrangeira. Seriam dois trajetos, duas mudanças: de uma cidade à outra e depois a próxima, a primeira de todas. E por isso, nesta cena, Luíza olhava solene para aquilo que não chamaria mais de casa dali a alguns instantes, que já estava mais do que nua, só habitada pelo o que deixara pra trás – alguns móveis, frascos, potes vazios de sorvete, produtos pela metade – e dizia adeus a tudo e também àquela janela, que naquele momento era a presença mais forte da cidade, posto que estampada de árvores. Decidida pela partida, mas com grande amor por aquele chão e pela vista daquele fim de asa, o seu território, Luíza trancou pela última vez o apartamento 523.
Ajeitou a mochila nas costas, com o coração num disparo só, e encontrou-se com o motorista que aguardara dizendo você está atrasada e reclamando que os olhos ainda estavam borrados da noite anterior e que provavelmente ainda estava com álcool no juízo. Ele não sabia que o que lhe doía era a grande intervenção de agulhas que fizera no corpo e que a partida era tão aguda quanto a cicatrização daqueles rabiscos na pele. E que a noite anterior foi nada mais que a sensação de que não havia mais tempo, e caminhava nua pela casa com os amigos que tentavam um registro de seus passos e riscos, fotografando tudo em três, dizendo eu te mando tudo por e-mail, e ela, repito, andando nua pela casa feito alguém já sem norte e ao mesmo tempo preparando mapas, guias, endereços e todo o resto para a partida. Sorria de desespero, se o fazia. Por que diabos havia escolhido algo tão grande, tanta mudança numa só? Luíza e seus amigos – os co-autores – se demoraram horas naquele quarto construído para que fosse cenário, encenando sem dramaturgia uma peça cuja personagem principal era a despedida. Sendo que a despedida estava inscrita no corpo de Luíza e datada. Tinha hora pra acabar e já não tinha mais tempo para dizer adeus aos amigos. Já não tinha mais copos nem cadeiras nem sossego. Me desculpe, meus amigos, mas preciso morrer um pouco. Enviaria a mesma carta para muitos destinatários, depois, com tempo, mas agora precisava sair de cena.
Ela foi o trajeto todo meio surda, talvez nem tão solene como antes, porque sabia que voltaria à capital. Estava deixando pendente uma defesa. Mas ela percorreu o trajeto ao aeroporto com o que agora suponhamos que seria uma felicidade clandestina, uma vez que é isso o que chamam do sentimento furtivo que nos fala alto ao corpo, afiado ao coração e mesmo assim é intensamente oculto, pois incógnito. Chegara. Era hora de descer. Desça, Luíza, vamos, disse ele, enquanto ela ainda se demorava recostada no banco do carro. Ele fez algumas recomendações – e ela ainda meio surda – e no meio delas ela o abraçou forte, mas muito forte mesmo, talvez materializando nele a despedida de todo o resto, e foi a única vez que Luíza chorou naquele adeus, e chorou de medo, rápido, mas alto, sem que pudesse disfarçar, tomando seu pai nos braços porque naquele instante sentiu muito medo de ir embora, de atravessar fronteiras e de mudar de vida. Por que diabos havia escolhido algo tão grande, tanta mudança numa só? Depois disse, sem limpar lágrimas nem nada, pois havia sido um choro seco, quase como um uivo, obrigada por me comprar essa passagem, por me deixar passar. Obrigada por me dar teus braços para que eu possa alçar este vôo. Obrigada por me ensinar que a vida pode se navegar sem medo e sem bússola. Obrigada. Eu dou notícias quando puder. Tchau.