É lá

Cena 8

Acordara ultimamente mais cedo do que ele, do que de costume. Foi para cozinha cumprir seus deveres nutricionais, pôs Arnaldo nos ouvidos e não sei exatamente porquê algo a desautomatizou e foi capaz de olhar a colher que mexia o chá e reconhecer todo o resto espalhado cômodo adentro notando o passado, nos restos da casa otrora morta, que estava do lado de fora. Conseguira finalmente abrir as caixas, mas elas não deram sentido ao enredo. Naquele instante só a trilha sonora era plena de significado.
Ela, na cozinha. Ele, no quarto. O menino, na barriga. E embora presente ali, ela pensava neste exato instante de música, chá e autoanálise, que pouca coisa coube nas caixas e que quase nada restara de si. E que parasse já de acumular coisas, chega de guardar souvenirs, bloquinhos, bibelôs. Ele dizia: repare como tudo dança. Nada estaria fixo num casa habitada por marinheiros. Tudo era provisório, aqueles talheres poderiam ser cerrados em caixas logo mais, pensou, mas, não, havia algo de errado neste discurso, a interrompo. Pois dentro dela cabia justamente o definitivo.
Assumo a direção, repito a música e digo: repare se não é aqui o amor. A vida ali, muda, se via sobressalente ao redor daquela colher. Ouça e diga se não foi esse o seu desejo. O amor, escrevo rude nas paredes da cozinha para não correr o risco de ser incompreendia por sua miopia, não é aqui o amor?
Ela olhou fundo nos meus olhos, estática e surpresa pela minha chegada tão cedo, e já havia tempo que eu não a narrava nada, e após alguns minutos de silêncio, me disse: eu sai do armário, não foi? E agora é hora de sair do ar e pôr os pés no tablado, em terra firme, confirmei.